Adam Bourscheit
31/05/2009 22:00
Depois de três anos vasculhando informações sobre as ramificações da pecuária  nacional, a organização não-governamental Greenpeace acumulou dados suficientes  para lançar o relatório A farra do boi na Amazônia. Além de constatar que a  criação de gado na região vem provocando a maior onda de desmatamento do globo,  a entidade mostra a total ambigüidade entre discursos e ações governistas quando  o assunto é preservação da maior floresta tropical do planeta.
Conforme  o Greenpeace, o governo brasileiro fomenta a destruição da Amazônia quando  destina pesados investimentos diretos e linhas de financiamentos a atividades  que provocam desmatamento, além de manter baixa presença do poder público, tanto  no fornecimento de serviços básicos quanto em fiscalização contra ilegalidades.  Tudo isso concentra a expansão da pecuária na região, onde a falta de  “governança” significa terra e mão-de-obra baratas. Em área média anual, a  Amazônia brasileira tem a maior taxa mundial de perdas florestais.
A  entidade elaborou o estudo a partir de fontes oficiais de dados, com a ajuda de  informantes em governos e empresas, seguindo caminhões, realizando sobrevôos,  analisando imagens de satélite e muito bibliografia. “Do boi não se perde nada,  se aproveita tudo. A cadeia de produtos tem uma complexidade incrível, com o  couro figurando como um co-produto da pecuária de grande peso no mercado  internacional. Mas, o mais surpreendente, é a quantidade de subprodutos e  setores envolvidos. Até pó de extintor de incêndio é fabricado com chifres e  cascos de bois moídos, enquanto glândulas são exportadas para laboratórios  farmacêuticos na Suíça”, contou André Muggiati, especialista da campanha  Amazônia do Greenpeace.
Em quase 30 páginas, o documento relembra fatos  divulgados pela imprensa para mostrar que os esforços dos órgãos ambientais e os  discursos governistas são mero “verniz verde” frente aos aportes de dinheiro em  atividades econômicas baseadas no desmatamento da floresta. Como exemplo, 85%  dos US$ 41 bilhões (mais de R$ 80 bilhões) liberados pelo governo em julho do  ano passado, para o Plano Agrícola e Pecuário 2008/09, foram destinados à  agricultura industrial, diz a ong. Graças a esse tipo de “investimento”, a  pecuária é responsável por oito em dez hectares desmatados na Amazônia  brasileira.
Ainda de acordo com o relatório, o governo é “sócio” em  várias empreitadas que contribuem para a degradação da floresta. Isso acontece  com os apoios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)  concedidos a empresas do ramo da pecuária. Desde 2007, empresas responsáveis por  mais da metade das exportações brasileiras de carne receberam US$ 2,65 bilhões  do banco, em troca de ações para o governo brasileiro. Os frigoríficos Bertin,  JBS e Marfrig ficaram com a maior parte do dinheiro público, informa o documento  não-governamental. O IFC, braço de empréstimos privados do Banco Mundial, também  investiu US$ 90 milhões em um projeto do Bertin. O frigorífico foi multado em  julho passado em mais de R$ 3 milhões, por estocar madeira nativa sem licença. 
“A participação societária do governo nessas empresas mostra uma grande  contradição, pois enquanto apresenta metas para reduzir o desmatamento em  negociações internacionais sobre mudanças climáticas, investe pesadamente na  ampliação da atividade dessas empresas na Amazônia. Não era surpresa o fato de  que esses grupos estimulavam a devastação da floresta, no entanto o governo  segue investindo nesses setores, contrariando o interesse da população, que é o  da proteção da Amazônia. Isso é escandaloso”, ressaltou Muggiati.
O  Brasil possui cerca de 200 milhões de cabeças de gado, o maior rebanho comercial  do mundo, e é o maior exportador de carne. Divide com a China a liderança na  exportação de couro curtido. Não satisfeito, o governo quer dobrar a  participação brasileira no comércio global de carne na próxima década. Ano  passado, o comércio de gado no Brasil movimentou US$ 7 bilhões, e o couro  representou mais de um quarto desse valor.
Reinhold Stephanes, ministro  da Agricultura, anuncia com freqüência que o Brasil se tornará o maior produtor  e exportador mundial de itens do agronegócio. Para abocanhar uma fatia cada vez  maior do mercado global, o governo vem disponibilizando recursos públicos para  expandir o processamento de produtos pecuários na Amazônia. Todavia, o Brasil  tem entre cem e 150 milhões de hectares (quase o tamanho do Amazonas) em  pastagens degradadas, que poderiam ser aproveitadas para produção. Até o  momento, o governo não apresentou nenhum plano para sua recuperação e  uso.
Em abril, Carlos Minc (Meio Ambiente) prometeu negociar com o BNDES  uma linha de financiamento específica para ajudar a reerguer frigoríficos  abalados pela crise econômica. Assim, empréstimos teriam “cláusulas ambientais”  e a fiscalização nos abatedouros aconteceria em conjunto com a Agência Nacional  de Vigilância Sanitária (Anvisa). Minc também quer uma moratória para a carne  ilegal (boi pirata), nos mesmos moldes da moratória da soja, que desde 2006  envolve produtores e exportadores de grãos no compromisso de não comercializar  soja de áreas desmatadas da Amazônia. A indústria da exportação vem adiando um  acordo.
Comércio de olhos vendados
Depois de  rastrear a cadeia de comércio dos produtos da pecuária na Amazônia, o Greenpeace  descobriu que marcas conhecidas mundialmente também alimentam o desmatamento com  suas compras. Isso ocorre a partir de centenas de fazendas envolvidas em  desmatamento ilegal e até trabalho escravo que figuram na lista de fornecedores  de gado para os frigoríficos Bertin, JBS e Marfrig. Em seguida, seus produtos  são processados em outras regiões do país, com a mistura de produtos legais e  ilegais, permitindo uma “lavagem” ao longo da cadeia comercial, até chegarem à  exportação.
Empresas famosas como Adidas, BMW, Carrefour, EuroStar,  Ford, Honda, Gucci, IKEA, Kraft, Nike, Unilever, Colgate/Palmolive, Johnson  & Johnson, Tesco, Toyota, Wal-Mart, Gucci, Timberland e tantas outras  compram produtos brasileiros elaborados com desmatamento ilegal, trabalho  escravo, invasão de áreas protegidas e terras indígenas. Fornecedores do Serviço  Nacional de Saúde do Reino Unido e no Oriente Médio, cujos clientes incluem as  forças militares britânica, holandesa, italiana, espanhola e norte-americana,  também adquirem produtos da pecuária amazônica. As nações que mais compram são  China, Estados Unidos, Itália e Reino Unido. Isso tudo sem descartar o consumo  interno crescente no Brasil, onde os supermercados Carrefour, Wal-mart e Pão de  Açúcar controlam quase 40% das compras do setor.
“Esperamos que essas  empresas deixem de comprar produtos da pecuária amazônica com origem duvidosa.  Não se pode afirmar que este ou aquele item tem carne ou couro ilegais, afinal,  a cadeia produtiva permite a mistura de produtos “sujos” e “limpos”, mas também  não se pode garantir que não tem. E se nós conseguimos rastrear a  comercialização, o governo também pode, pois tem ferramentas mais eficientes.  Para o gado, já existe um sistema de rastreabilidade oficial, mas ele precisa de  ajustes e também contemplar variáveis sociais e ambientais. Consumidores em todo  o mundo querem saber se os produtos que compram provocam desmatamento ou se são  elaborados com trabalho escravo”, ressaltou Muggiati.
O Ministério  Público Federal entrará com ações civis civil públicas contra 22 fazendas que  não respeitaram o embargo imposto pelo governo e seguiram com pecuária e outra  cobrando danos morais em favor da sociedade brasileira por toda a degradação  ambiental provocada pela criação de gado na Amazônia. Também enviou notificações  para 72 empresas, incluindo as grandes redes de supermercados, informando-as  que, se persistirem na compra de produtos pecuários de origem duvidosa, poderão  ser processadas.
O Plano Nacional de Mudanças Climáticas foi apresentado  na conferência climática de Poznàn (Polônia), no ano passado, com o compromisso  de reduzir em 72% o desmatamento, até 2018. Para atingir essa meta, o país deve  obrigatoriamente acabar com o desmatamento ilegal. Conforme o Greenpeace, entre  80 e 120 bilhões de toneladas de carbono estão estocados na Amazônia. Logo,  destruí-la liberaria o equivalente a 50 vezes as emissões anuais de gases-estufa  dos Estados Unidos, comenta o relatório da entidade.
O trabalho do  Greenpeace também chega em um momento crítico para as florestas nacionais, pois  grupos organizados no parlamento e dentro do governo se articulam para derrubar  leis apontadas como entraves ao agronegócio e aprovar outras legislações que, na  prática, anistiarão quem desmatou ilegalmente e reduzirão as salvaguardas das  matas brasileiras.
Ministério da Agricultura e associações brasileiras de  Supermercados (Abras) e da Indústria Exportadora de Carne (Abiec) foram  procuradas pela reportagem, mas não se pronunciaram sobre o relatório  não-governamental.
quarta-feira, 3 de junho de 2009
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